█ Arrego ou propina, a moderna vassalagem tropical

– A vigência do regime feudal nas comunidades brasileiras –


Vassalagem na Idade Média, segundo os dicionários, consistia em um acordo de serviços recíprocos entre uma pessoa política e economicamente menos influente e uma outra que, sob esses dois aspectos, lhe era superior. O fenômeno da vassalagem é próprio do sistema feudal, que considerava como pilar do equilíbrio político, militar e econômico, a divisão do território e o regime de propriedade decorrente desta divisão; isto é, o denominado feudalismo.


Como consequência, um vassalo era uma pessoa que tinha uma obrigação mútua a um senhor ou soberano, no contexto do sistema feudal medieval. A vassalagem era exercida intra reinos e extra reinos; isto é, entre o rei e a sua própria nobreza e entre monarcas de reinos distintos.


O vocábulo arrego, por sua vez, ainda segundo os dicionários, expressa a desistência, a impossibilidade de continuar suportando uma determinada situação por medo, irritação, impaciência ou constatação de derrota. Trata-se de um regionalismo brasileiro, de uso informal, alteração de “arreglo” (regionalismo, hoje, mais restrito ao Rio Grande Sul – ato ou efeito de arreglar; ajuste, combinação, acordo), por sua vez, palavra derivada do espanhol arreglo, de mesmo significado. Arreglo vem, etimologicamente, de “a regla”, “à regra”, “conforme a regra”.


Arrego, ademais, é a palavra usada para traduzir a propina paga pelos traficantes a algumas ‘autoridades policiais’, para que deixem correr livre as atividades de venda de drogas nas comunidades carentes onde eles se abrigam. Por extensão, podemos considerar arrego, também, a propina paga por empresários aos agentes e autoridades do Estado para vencer concorrências públicas, para receber pagamento por serviços já realizados ou mercadorias já vendidas e entregues; as propinas pagas aos fiscais do governo por comerciantes e industriais, para não serem autuados por reais ou supostas irregularidades; as propinas pagas pelos cidadãos aos agentes de trânsito, para não serem multados; as propinas pagas por cidadãos ou empresários para comprar sentenças, alvarás, portarias, decretos e leis que os favoreçam; etc. Tudo isto, pode ser abrangido sob a denominação de arrego.


Notícia recente, divulgada na imprensa, informava que além das 10 mil trouxinhas de maconha apreendidas por policiais em incursão à favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, foi confiscado, também, material de contabilidade do tráfico no qual havia um caderninho com a inscrição: “R$ 1.500 – arrego (propina paga para autoridades)”.


Como a antiga vassalagem, que consistia no pagamento de determinada quantia anual ao soberano detentor do poder de vida e de morte sobre as pessoas daquela área, o arrego pago pelos ‘gerentes de bocas de fumo’ e pelos chefes de facções criminosas à algumas autoridades policiais, objetiva comprar proteção e direito à livre atuação na área de influência destas mesmas autoridades. O mesmo ocorre com aqueles indivíduos que desejam comprar os serviços de agentes públicos para obter facilidades na venda de bens e serviços ao Estado; para agir de forma ilegal violando códigos, portarias, normas e leis existentes; para comprar sentenças, alvarás, decretos e leis que os beneficiem, etc.


Na Idade Média, do ponto de vista social, esse entendimento criava um tipo de contrato legal e duradouro, que selava as chamadas relações de suserania e vassalagem e eram feitos entre os membros mais fortes e os mais fracos da nobreza de um mesmo reino ou de reinos distintos. Possuía até uma cerimônia que selava o ato da vassalagem, traduzida em um beijo entre as partes, mais tarde adotado pelos chefes mafiosos italianos e seus gerentes.


No caso brasileiro do arrego entre marginais e algumas autoridades, por se tratar de algo ilegal, o contrato é verbal e temporário, pois as autoridades policiais mudam de área e os criminosos morrem com frequência. Todavia, aqueles que os substituem estão a par das regras do jogo e costumam sempre mantê-las. Tratando-se de empresários (cujas contas bancárias e das suas empresas são controladas pelo fisco), muitas vezes, alguns contratos de prestação de serviços de consultoria por parte dos agentes públicos são cuidadosamente elaborados para esconder o simples pagamento de propina ou os agentes públicos venais são remunerados com recursos do chamado caixa 2 e pagos em dinheiro vivo.


As terras das comunidades carentes onde proliferam as facções criminosas, normalmente, pertencem ao Estado; sendo seus moradores simples ocupantes ou posseiros. As ‘autoridades policiais’ que reprimem as atividades criminosas ali desenvolvidas, são representantes do Estado. Portanto, existe uma clara ascendência de uns sobre os outros. Uns estão do lado da lei, representando-a e operando em terras que pertencem ao Estado. Outros estão agindo contra a lei e em terras que ocuparam, quase sempre de forma ilegal. Portanto, da mesma forma que ocorria no feudalismo durante a Idade Média, a ascendência moral e legal, de uns sobre os outros, possibilita a cobrança do arrego para ‘fazer vistas grossas’ as violações da lei.


Embora em algumas comunidades os efetivos numéricos possam se equivaler; isto é, os integrantes das facções criminosas serem em número quase idêntico aos dos efetivos policiais que controlam aquela área, é evidente que o poder bélico e de logística do Estado sempre será superior ao dos criminosos.


Causa até estranheza o fato de que, embora detendo esta supremacia, o Estado jamais tenha tentado uma ação definitiva para acabar com o tráfico de drogas nas comunidades que controla, mas, apenas, ações esporádicas. A única explicação razoável para o fato é a existência da mencionada vassalagem, que engorda inúmeros contracheques municipais, estaduais e federais, além de possibilitar o abastecimento de uma demanda reprimida por substâncias estupefacientes, oriunda das classes de renda mais alta. Não foi por outra razão que o congresso, recentemente, votou lei descriminalizando a posse de certa quantidade de drogas para consumo próprio.


Dentre os efeitos da moderna vassalagem, no que respeita as facções criminosas, destacam-se, principalmente: a venda de drogas de forma livre nas comunidades, a venda de veículos e de cargas roubadas, a proteção contra a invasões de outras facções criminosas, a aquisição e o uso de armas e munições modernas, o aviso antecipado de alguma incursão policial ou militar prevista para aquela área. Relativamente ao empresariado e ao cidadão comum, o pagamento de propina chegou quase a se institucionalizar em governos anteriores. Praticamente nada era obtido junto às instituições públicas sem algum tipo de agrado àqueles chefes e agentes que decidiam.


Por conta desse nosso processo histórico de ocupação de terras públicas e da relativa autonomia política garantida a cada comunidade carente, localizada quase sempre em locais de difícil acesso onde o poder público tem dificuldades de se fazer presente, podemos observar que as relações de vassalagem contribuíram para a descentralização do poder político municipal e estadual. Ali, naquelas comunidades pobres, mandam os chamados ‘donos do morro’ e não os governantes estaduais ou os prefeitos municipais. Os donos do morro possuem total influência e domínio sobre os moradores, para exigir que votem em determinados candidatos nas épocas de eleições. Por outro lado, constata-se que a prática da vassalagem tem sido de importância fundamental para que algumas ‘autoridades policiais’ atuantes sobre uma determinada comunidade, mediante o pagamento do arrego assumissem a tarefa de alertar e proteger a facção ali estabelecida contra qualquer tipo de ameaça externa oriunda de facções de outras regiões.


Os modernos traficantes vassalos, como empresários que são, tentam internalizar aos seus custos de produção, de comercialização e de manutenção a propina que são obrigados a pagar para algumas ‘autoridades’ sob a forma do chamado arrego. Assim é que para engordar suas receitas passaram a dominar a venda de botijões de gás e os sinais de internet e de TV à cabo, obtidos ilegalmente dos concessionários (os chamados ‘gatos’ ou ligações clandestinas), utilidades estas necessárias à vida dos moradores das comunidades, que pagam por elas preços até mesmo mais elevados do que os praticados pelo mercado; já que, os vendedores legalizados destes bens e serviços estão proibidos de entrar nas comunidades pelos chefes locais ou ‘donos do morro’.

Por outro lado, para granjear o apoio dos moradores, os chefes locais determinam, em algumas ocasiões, o roubo de caminhões de carga que, conduzidos para a localidade, têm as suas cargas (normalmente constituídas por eletroeletrônicos ou gêneros alimentícios) vendidas a preços ínfimos ou, até mesmo, distribuídas gratuitamente para os moradores locais. Este tipo de ação social desenvolvida pelos integrantes das facções criminosas, bem como o ato de regular a aplicação da justiça local nas querelas surgidas entre moradores, faz com que sejam aceitos, além de protegidos e acoitados quando das incursões das verdadeiras autoridades policiais honestas, lídimos representantes do Estado e não acordados com os chefes locais.


Historicamente, o feudalismo entrou em crise e cedeu lugar a formas mais modernas de relações econômico-sociais e políticas.  As principais causas de sua decadência foram, basicamente: o crescimento demográfico nas cidades; a revolução burguesa, que incentivou o êxodo rural e o comércio; a peste negra que reduziu a população nos campos, retirando poder dos senhores de terra; as cruzadas, que incentivaram o desenvolvimento comercial; e o renascimento, que operou uma mudança de mentalidade mediante novas descobertas culturais, científicas e artísticas.  Com a queda do feudalismo, o fim das monarquias, a libertação das colônias e a implantação das repúblicas democráticas, a vassalagem ou acabou ou se transformou, assumindo novas formas de exercício do poder do forte sobre o fraco para ganhos financeiros.


No que respeita a vassalagem interna, em alguns casos ela simplesmente terminou; em outros ela passou a vigorar sob a forma de uma servidão consentida, assalariada e privada. Em outros casos os agentes públicos passaram a cobrar duas vezes pelos seus serviços: uma do próprio governo ao qual serviam (e que estabelecia as normas) e outra, sob a forma de arrego ou propina, pago pelos cidadãos que desejavam violar as normas.


Quanto a vassalagem externa ela também se transformou, passando a ser exercida mediante a fixação, pelos países centrais, dos termos de troca entre os seus produtos vendidos e aqueles vendidos pelos países periféricos. Produtos industrializados com alto conteúdo tecnológico produzidos pelos países centrais custavam caro e produtos agrícolas, minerais e semimanufaturados produzidos pelos países periféricos custavam barato, drenando dos segundos para os primeiros vultosas somas anuais.


Evidentemente, o arrego ou vassalagem interna, sob todas as suas formas, já mencionadas, da mesma maneira que a vassalagem do tempo do feudalismo da Idade Média pode ter um fim, desde que concorram para tal determinados fatores supervenientes que modifiquem a situação de dependência entre as partes envolvidas, como aqueles fatores mencionados que contribuíram para a queda do sistema feudal.


O governo do presidente Bolsonaro tem se caracterizado pelo combate ferrenho a todas as formas de corrupção, buscando desregulamentar a economia, os serviços governamentais e as relações sociais, de modo a que diminuam as possibilidades dos bons cidadãos se verem obrigados a ter de pagar propina aos maus servidores para obter quaisquer serviços públicos que lhes são de direito ou a dos maus cidadãos pagarem para que os maus agentes do Estado deixem de cumprir as suas missões constitucionais de manter a lei e a ordem e de fiscalizar a execução e o cumprimento das leis.


Ocorre que em quase três décadas de governos de esquerda, nos quais inúmeros casos de corrupção foram intensamente denunciados (tendo motivado até a criação de uma operação policial e judiciária conhecida como Lava a Jato), a administração pública foi praticamente dominada por ativistas a serviço de determinados partidos políticos, com a missão exclusiva de arrecadar dinheiro público. Este fato foi sobejamente explicitado por vários réus da Operação Lava a Jato que, beneficiando-se do instituto da delação premiada, desnudaram para as autoridades judiciárias todo o esquema de loteamento de cargos na administração dos três poderes da república, feito pelos governantes para milhares de militantes e apadrinhados contratados sem a realização de concursos públicos, visando, tão somente, o desvio de recursos financeiros em benefício da quadrilha que se assenhoreou do poder e de seus respectivos partidos políticos.


Por outro lado, muitas das medidas de desregulamentação implantadas pelo presidente Bolsonaro têm sido contestadas, desfeitas ou tornadas sem efeito pelo poder legislativo ou pelo poder judiciário. Na prática, sem a realização de um plebiscito popular, transformaram o sistema presidencialista em um sistema parlamentarista, onde o legislativo e o judiciário mandam, retirando poderes do executivo cujo presidente foi eleito pela maioria do povo justamente para mandar.


Como no antigo feudalismo, o nosso país está hoje repleto de senhores feudais, tanto nas cidades quanto nos campos, exercendo seus papéis de suseranos. Os mais poderosos, através do estabelecimento dos chamados ‘currais eleitorais’ (locais onde possuem maioria de votos nas eleições) e do ‘loteamento’ dos cargos públicos de decisão (que controlam a destinação e a liberação das verbas do orçamento), cobram vassalagem dos mais fracos e estes a cobram dos mais fracos ainda, em um sistema em cascata que só contribui para aumentar aquilo que chamamos de Custo Brasil e que, ademais de encarecer os preços dos nossos produtos, desestimula o empreendedorismo, a livre iniciativa e dificulta a geração de novos empregos.


Esperemos que com o novo partido político criado pelo atual presidente, no qual só entrarão políticos ‘ficha limpa’, isto é, políticos com um passado sem mácula, já nas próximas eleições municipais as cinco mil e poucas prefeituras existentes no país possam ser saneadas. Tratar-se-á de um pequeno passo para o eleitor brasileiro, mas de um gigantesco passo para colocar fim à corrupção e à impunidade, endêmicas em nosso país.