Antônio Hamilton Martins Mourão, matéria publicada no “O Estado de S.Paulo”, 06 de novembro de 2019 | 03h00
Até onde os fatos que se vêm sucedendo vertiginosamente no Brasil são ou serão acontecimentos, só o tempo dirá. Boa parte deles desaparecerá na névoa da desinformação que serve para confundir a opinião pública, prestando-se a propósitos inconfessáveis.
O presidente da República concluiu, com absoluto sucesso, longa e diversificada viagem ao Extremo Oriente e ao Oriente Médio, mas o que se tornou manchete, eclipsando qualquer ganho para o comércio exterior brasileiro, foi a tentativa de vinculá-lo a um crime.
E se não bastasse esse ensaio canhestro de difamação, rapidamente transmutado em polêmica diversionária sobre gravações, emergiu ruidosamente o trecho de uma entrevista de seu filho que serviu de pretexto para manifestações em defesa da democracia movidas a oportunismo e má-fé.
Muito pior do que eventuais lacunas de conhecimento de quem não viveu os anos 60 e 70 é a desfaçatez dos que tinham perfeita compreensão do que faziam à época servindo a uma ideologia assassina e que seguem hoje mentindo para encobrir os seus enganos.
A esquerda no Brasil, para lá de imaginativa, inventou o confronto de um lado só. Feroz em atacar um ato autoritário, o AI5, decretado em dezembro de 1968, ela omite o totalitarismo patrocinado do exterior que movia os atentados terroristas que ceifavam vidas brasileiras.
No que insiste até hoje, fazendo desaparecer os motivos que levaram à reação da sociedade que escolheu nas urnas, em outubro de 2018, Jair Bolsonaro como seu presidente. E, como sempre, fugindo de sua responsabilidade pelo mal que causou com a violência, a agressão e a corrupção praticadas contra a sociedade, cujo ordenamento jamais suportou.
É tempo de a esquerda fazer uma verdadeira autocrítica de seus procederes políticos no Brasil. Autoritária na prática e totalitária no pensamento, como nos julgamentos da extinta União Soviética, ela condena de antemão seus adversários, façam o que fizerem.
Se os militares, da ativa ou da reserva, falassem alguma coisa sobre o AI-5, a esquerda os acusaria de se manifestarem indevidamente sobre assuntos políticos. Mas é rápida em criticá-los por não falarem, incapaz de entender que o seu silêncio é a prova do desejo de pacificação da sociedade a que servem.
Essa incompreensão do sentido de pacificação tem custado caro ao País, que tem uma tradição de anistia e da qual não deveria destoar a de 1979. A esquerda no Brasil, contaminada pela vertente revolucionária da luta armada, conseguiu a proeza que Raymond Aron atribuiu ao impasse nuclear da guerra fria: inverter a fórmula de Clausewitz, fazendo da política a continuação da guerra por outros meios.
É o que ela faz até hoje, passados 40 anos da aprovação da Lei da Anistia, buscando invalidá-la pela negação de seu princípio elementar: o esquecimento. Algo que, dado o intervalo de tempo aplicado a outros conflitos internos, como a Farroupilha, equivaleria a perseguir quem dela tomou parte às vésperas da Proclamação da República, um absurdo completo.
A grande razão do fracasso histórico da esquerda foi o seu diagnóstico da realidade. Eficaz na exploração das contradições, sua verdadeira vocação, ela se entregou de tal forma à manipulação dos fatos que perdeu a capacidade de interpretá-los, obcecada com as condições objetivas para a conquista do poder.
Esse é o grande problema de quem se move orientado primordialmente pela ideologia. Ela deixa de ser um fator de motivação, consequente às afinidades de grupos, para ser uma lente através da qual toda imagem da realidade é distorcida, ou até descartada, se não se encaixa no grau dos óculos pelos quais se enxerga o mundo.
Cada um pode tachar de infame o que quiser. Mas ninguém pode dizer que não o seja instituir um regime cognominado de presidencialismo de coalizão degenerado em corrupção institucionalizada. A esquerda vê infâmia em palavras dos outros, mas não a enxerga nos próprios atos, como no mensalão e no petrolão.
Depois de décadas no poder no Brasil, a esquerda não entende o cansaço da população com a sua problematização de tudo o que não resolveu, desde a economia até a segurança, passando pela saúde, pela educação e pela infraestrutura, arrasadas pela incompetência e má gestão. Com isso ela nem sequer apreende a realidade do País, onde ingressam cada vez mais investimentos, as reformas estruturantes avançam, a economia melhora e os índices de violência despencam.
É inútil, portanto, esperar que essa esquerda entenda que o Parlamento, onde ela está democraticamente representada, nunca foi tão livre para deliberar sobre o interesse da sociedade, liberto da pior das ditaduras, a da corrupção. Ou magnânima o bastante para reconhecer que, depois de muito tempo, o País tem um presidente da República que não está envolvido em conchavos de corrupção ou cooptação de parlamentares com dinheiro público.
Uma democracia não prescinde de um amplo e diversificado arco ideológico onde estejam representadas todas as preferências, tendências e percepções da sociedade, incluindo a clássica divisão entre o que se convencionou chamar de direita e esquerda. Uma esquerda democrática e responsável, defensora dos mais fracos e desassistidos, é uma condição da democracia.
Mas, a considerar o que faz e fala a esquerda no Brasil, parece restar-lhe pouco. A apologia da corrupção, ao negar a condenação de Lula em todas as instâncias. A intriga, procurando dividir a sociedade, o governo e o Estado. A falsificação, apresentando-se como centro ou liberal que nunca foi. E a confusão, tentando, aqui e no exterior, misturar o governo democraticamente eleito com os períodos de exceção anteriormente vividos no País.
Assim, atuando em desfavor da democracia no Brasil, a esquerda continuará onde está.
Perdida em seu labirinto.