O escritor e filósofo Luigi Pirandelo em sua obra ‘Um, nenhum e cem mil’ fala do personagem Vitangelo Moscarda que, ao ser criticado pela mulher com relação ao nariz que possuía, torto para a direita, do qual jamais havia suspeitado, resolve olhar-se em um espelho.
Surpreendeu-se com o que viu: “Aquela imagem entrevista de relance era mesmo a minha? Eu sou mesmo assim, de fora, quando não me penso? Então para os outros eu sou aquele estranho surpreendido no espelho; aquele e não mais eu tal como me conheço: aquele ali, que eu, de primeira, ao notá-lo, não reconheci. Eu sou aquele estranho que não posso ver vivendo nem conhecer senão assim, num momento de distração. Um estranho que só os outros podem ver e conhecer, não eu.”
Lendo a referida obra, lembrei-me de algumas de nossas importantes e vetustas autoridades que comandaram (e algumas que ainda comandam) os três poderes da república.
Será que elas possuíam a verdadeira noção de como nós, os humildes brasileiros que precisamos trabalhar para nos sustentar, as víamos, diariamente, em seus pronunciamentos públicos; solenidades; jantares; recepções; entregas de comendas e medalhas; encontros noturnos furtivos, não constantes da agenda e fotografados por algum jornalista bisbilhoteiro; conversas privadas com as mãos tapando as bocas, para que os jornalistas não conseguissem, através da interpretação da linguagem labial, perceber alguma frase ou palavra comprometedora, obscena, venal?
Certamente que não. Elas deveriam ter de si mesmos uma imagem muito diferente daquela que tínhamos deles.
O político gorducho e baixinho, com toda a certeza, se imaginava alto e de corpo atlético, invejado por homens e admirado pelas mulheres.
A deputada ou senadora gorda e mal trajada, imaginava-se, com certeza, uma modelo de capa de revista e, com seus olhares de soslaio e o balançar de melenas, imaginava despertar sentimentos de avassaladora paixão nos espectadores homens do jornal da noite na TV.
A autoridade judiciária careca, barriguda e com grandes bochechas, com toda certeza, imaginava-se belo e sedutor como um ator cinematográfico.
Será que tais autoridades ao proferirem suas sentenças, opiniões, pareceres, laudos, projetos de lei, etc., ou realizarem suas conferências, palestras, aulas magnas, pronunciamentos públicos, etc., usando palavras rebuscadas de um juridiquês, economês ou politiquês não compreendidos pela maioria do povo, viam-se como são na realidade; isto é, nada mais que simples charlatães, trabalhando para si próprios ou para seus grupos, tentando enganar as massas, justificar o injustificável, defender o indefensável?
Claro que não; pois, caso se dessem conta de como eram na realidade, certamente passariam pelo mesmo drama que tirava o sono de Vitangelo Moscarda: – “Como suportar em mim este estranho? Como não o ver? Como não o conhecer? Como ficar para sempre condenado a levá-lo comigo, em mim, à vista dos outros e no entanto invisível para mim?”
Certamente todos eles acreditavam em suas imensas sapiências, potências, belezas e aparências. É assim que seus superfaturados egos se mostravam perante eles mesmos e é assim, portanto, que eles imaginavam serem vistos pelos demais mortais.
Como bem sabem os psicólogos, os criminosos, para poderem conviver bem consigo mesmo, após o cometimento de crimes hediondos, encontram sempre uma justificativa plausível para os mesmos; explicação está que, ao lhes dar total razão, alivia as suas consciências culpadas, aquieta os seus espíritos malignos, tranquiliza as suas mentes criminosas, apazigua os seus sentimentos violentos e acalma os seus empedernidos corações. O mesmo ocorre com falsas autoridades, que foram alçadas as mais altas posições mediante apadrinhamentos, sinecuras e nepotismo; quando não acordos espúrios e inconfessáveis.
Ocorre, ainda, que os chamados ‘puxa-sacos’, figuras melífluas e quase sempre asquerosas que evoluem ao redor de autoridades, por vezes, são tão convincentes em suas mesuras, rapapés e elogios, que a falsa autoridade convence-se de que é, realmente, tudo aquilo que deles ouviu e que merece, mesmo, toda aquela deferência que lhe prestam.
Sentindo-se, pois, figuras tão importantes, tão poderosas, tão sábias, tão admiradas, elas costumam, normalmente, desprezar aqueles que fazem parte da pequena corte que lhes serve, ao mesmo tempo em que se tornam os ‘puxa-sacos’ daqueles a quem devem suas posições proeminentes e bem remuneradas, no estamento do Estado, ou daqueles que podem ajudá-los em suas aspirações futuras.
Vitangelo Moscarda, personagem simples, honesto e simplório, buscou perseguir o estranho que vivia dentro dele, tentando vê-lo da mesma forma que era visto pelos demais. A obra de Pirandelo finaliza com o personagem passando seus últimos dias em um hospício.
Caso estivéssemos vivendo em um país diferente, onde muitas autoridades não estivessem acima das leis, no qual os desvios de conduta e os crimes destes personagens fossem apurados com absoluto rigor e ninguém, por mais supremo que julgasse seu poder, conseguisse se ver impune e sair sorrindo após suas maquinações criminosas, muitas dessas autoridades descritas terminariam seus dias não em algum hospício, como Moscarda, mas em uma prisão de segurança máxima no interior do país.