█ Às portas do paraíso: entre o céu e o inferno

O livro “As Portas da Percepção”, do escritor Aldoux Huxley, publicado em 1954, descreve as experiências pessoais do autor ao ingerir peiote (um pequeno cacto utilizado pelos indígenas do México em eventos cerimoniais, que possui entre seus agentes ativos a mescalina, elemento considerado alucinógeno). Esta experiência proporcionou ao autor uma “visão sacramental da realidade”. Pouco depois de lançado, em edições posteriores, o livro foi complementado por um ensaio de 1956 denominado “Céu e Inferno”, que acabou se transformando em uma conclusão ao livro.


Em tempos de quarentena, tendo almoçado uma carne moída com polenta e tomado uma dose de cachaça de marca desconhecida, após o almoço passei por uma experiência, talvez, similar aquela do Huxley, quando consumiu peyote.


Em breve me vi em um estado alterado de percepção e de consciência em que julguei fazer parte da alta casta que compõe o estamento do Estado Brasileiro, nos três poderes da república. Vi-me, na ocasião, as portas do paraíso terrestre, vivendo uma situação, no mínimo, esdrúxula; quase sempre conflitante e contraditória: eu vivia dentro do inferno; porém, era agraciado com as benesses divinas, como se no céu estivesse.


Eu e meus companheiros éramos como agentes do capeta infiltrados no céu. Nós maquinávamos maldades e, em troca, recebíamos bênçãos, traduzidas estas nas chamadas mordomias sem fim, que acompanham e fazem parte do dia a dia de qualquer autoridade de país subdesenvolvido social e mentalmente como o nosso. 

A sensação que se apossou de mim, na ocasião, foi a de que dispunha de um poder quase ilimitado e de uma força descomunal. Eu podia fazer quase tudo aquilo que imaginava e que queria.


Tinha em minhas mãos um cartão corporativo praticamente sem limites de crédito. Possuía foro privilegiado, caso cometesse algum dos chamados ‘malfeitos’; residência funcional em uma bela casa no Lago Sul da Capital Federal, com carro blindado, motorista, cozinheira, mordomo e segurança particular.


Ia me esquecendo de mencionar o plano de saúde, válido para os melhores médicos e hospitais no país e no exterior. Alguns outros chamados penduricalhos, que engrossavam os meus benefícios de autoridade constituída, nem valem a pena serem mencionados; como, por exemplo, os auxílios creche, auxílios moradia, auxílios combustível, diárias, passagens aéreas, auxílios faculdade, etc.


Devo confessar, a rigor, que, da mesma forma como ocorria com a maior parte deste tão falado estamento, eu também era oriundo das classes econômicas menos favorecidas. Cheguei até a alta posição onde cheguei graças às amizades que fiz durante o meu curso na faculdade ou devido ao empurrão que recebi por parte do partido político a que me filiei logo depois de formado.


Jamais poderia imaginar que eu, alguém cheio de vícios e imperfeições, vindo de uma classe social inferior, algum dia chegaria às portas do paraíso, como de fato cheguei.


O padrão de vida que desfruto atualmente, sem ter feito quase nenhum esforço para tanto, a não ser participar de algumas reuniões políticas cujos assuntos tratados me sinto impedido de mencionar por ter jurado jamais falar sobre os mesmos com pessoas estranhas, é comparável aos de grandes empresários nacionais e internacionais.


Estes, reconheço, trabalharam muitíssimo mais do que eu para poder ter o padrão de vida que possuem ou, então, herdaram de suas famílias a fortuna e os bens de que hoje dispõem. Todavia, minhas responsabilidades são infinitamente menores do que as deles.


Em primeiro lugar, não possuo centenas ou milhares de empregados sob minha dependência; não necessito planejar hoje os meus ganhos de amanhã; ademais, não preciso passar pelo constrangimento de ter de subornar autoridades para obter aquilo que desejo, quando muito sou eu mesmo o subornado…


Não mencionarei integralmente os jantares a que compareço nas casas dos meus pares, que também sou obrigado a retribuir, para não despertar a ira daqueles infelizes que me leem: menus elaborados por famosos mestres da culinária francesa, vinhos das melhores regiões europeias e de safras famosas, queijos e ‘desserts’ importados, uísques só acima de vinte e um anos, Porto e licores de afamadas marcas.


Comparo a vida das autoridades na capital federal àquelas de quaisquer cortes europeias durante a ‘belle époque’. A única diferença é que por aqui quase ninguém fala o francês, coisa comum nas cortes europeias daquela época.


Mas, voltando as situações conflituosas do dia a dia de uma autoridade, por vezes, minha consciência se pronunciava. Durante alguma maquinação para ganhar dinheiro de forma fácil, como tantas existentes no meio em que transitava, ao discutir com companheiros sobre nossas estratégias futuras, sentia que lá de dentro do meu ser, do fundo das minhas entranhas, uma pequena voz se levantava. No início baixinha, meio rouca. Depois mais forte, estridente. A voz dizia, quase sempre: – Não faça isso, você vai prejudicar milhares, senão milhões de pessoas!


Nessas ocasiões eu engolia em seco, abria minha caixa de charutos cubanos e acendia um deles. Dava uma boa baforada e contemplava pela janela envidraçada do gabinete as largas avenidas do Plano Piloto e, ao longe, as águas do Lago Paranoá. Chamava a secretária e pedia que confirmasse meu voo para Genebra, pois queria abrir outra conta para o novo negócio que vislumbrava. Tinha por regra não misturar um negócio com o outro, nem as suas respectivas comissões em uma única conta. Louvava-me nas palavras de alguém, que ouvira tempos atrás: cada caso é um caso, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa!


A maldita voz, por vezes, se calava logo; mas, em algumas situações perdurava. Nestes casos eu parava o que estava fazendo, chamava o motorista e pedia que me levasse ao clube. Lá, tomava um banho de piscina, fazia uma sauna, conversava com amigos e, quando dava por mim, a voz já havia sumido.


Dali seguia direto para casa, onde minha querida mulherzinha, que conhecera uma semana antes, me esperava ricamente vestida e toda perfumada para jantarmos em algum restaurante badalado da capital.


Alguns, certamente, a esta altura já estarão pensando mal de mim. Em minha defesa, após muita meditação filosófica sobre o assunto, tenho alguns bons e fortes argumentos que muito me tranquilizaram em meus deveres e responsabilidades de autoridade:


           1. se não for eu será outro, que talvez faça pior do que eu!

           2. o que os olhos dos contribuintes não veem, seus corações não sentem!

            3. Em todo ato de maldade, sempre existirá alguma bondade latente ainda não percebida e vice-versa!


Céu e inferno nada mais são, segundo penso, de acordo com a Lei da Correspondência do Caibalion, de Hermes Trimegisto, a mesma coisa. A mencionada lei diz que:  “O que está em cima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora”.


Eu, sabiamente, por extensão e por similaridade, acrescentei que aquilo que está no   céu é como aquilo que está no inferno. Com isto, minha consciência se tranquilizou, pois a contradição que havia em minha mente, com respeito a fazer maldades e ser bem remunerado por isso, desapareceu e passei a dormir bem todas as noites sem a necessidade do comprimido de Rivotril.


Essa é, pois, para aqueles que desconheciam, a vida de uma autoridade federal, estadual e municipal nesta terra tão bem descrita e elogiada pelo poeta Olavo Bilac, quando disse em versos: – “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! Não verás nenhum país como este! (…) “Boa terra, jamais negou a quem trabalha o pão que mata a fome, o teto que agasalha.”


Voltando, agora, ao início do presente texto, a pouco e pouco me vi saindo do transe em que entrara  e que aqui reproduzi, certamente tudo aconteceu por ter tomado aquela cachacinha sem marca e comido a carne moída com polenta, durante a quarentena estabelecida pelas autoridades, notadamente as estaduais e municipais.


Pelo esdrúxulo e inusitado acontecimento, só posso atribuí-lo a alguma interação alimentar entre as substâncias que ingeri, provocando-me este estado estupefaciente em que, com toda certeza, imaginei coisas que não existiam na realidade.


Da minha parte, não tenho nada a reclamar contra qualquer autoridade, sejam quais forem, pois sei que todas elas estão trabalhando arduamente em seus gabinetes, tanto na capital federal quanto nas demais capitais estaduais e nos demais municípios de todo o país, zelando pela nossa segurança, pelo nosso conforto e pelo nosso progresso…


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