█ A eles toda honra e toda a glória!

Recordo-me de haver lido, em algum lugar, a seguinte declaração de um General Norte-americano, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial:


-“Sempre que vejo qualquer fuzileiro naval sou o primeiro a bater-lhe continência; pois reconheço o importante papel que os fuzileiros representaram na vitória que tivemos durante esta guerra que acabamos de travar”.


Eu, tendo diversos amigos médicos, além de médicos na família, e conhecendo de perto o árduo trabalho e o envolvimento corajoso de todos eles durante esta pandemia que assolou também o nosso país, faço minhas as palavras do velho general:


-“Sempre que vejo um médico, na atualidade, sou o primeiro a lhe cumprimentar e agradecer em nome de todos os pacientes, contaminados pelo novo vírus, que atendeu e que conseguiu salvar com o risco da sua própria vida, pois reconheço o importante papel que estão prestando no combate e na vitória sobre esta importante guerra que estamos travando contra um vírus que ataca a todos, não escolhendo raça, cor, ideologia ou religião”.


Digo isto, por que conheço alguns médicos que sucumbiram ao SAR COV 2, contraído de pacientes que atenderam nos hospitais públicos e privados em que trabalhavam. Considero-os como verdadeiros mártires da profissão que escolheram e acho que o papel que desempenharam neste trágico episódio deveria ser condignamente reconhecido pelas entidades médicas, pela sociedade e pelo poder público.


Há poucos dias tive a oportunidade de conversar com um jovem médico, recém-formado, durante uma viagem de avião. Como sentamos lado a lado, após algum tempo entabulamos amistosa conversação.


Passarei a relatar aos leitores os detalhes do que ele me disse, para que aqueles que desconhecem o que é ser médico e as agruras pelas quais a maioria deles passa, possam ter uma pálida ideia da vida de trabalho, dedicação e apreensão, diárias, da grande maioria dos que se dedicam a grandiosa e meritória atividade de salvar vidas humanas em um país como o nosso, onde as autoridades elegem como prioridade os estádios de futebol ao invés de hospitais, onde os heróis nacionais são esportistas ou artistas (que trazem alegria e divertimento às populações), ao invés de médicos, de cientistas, de policiais, de militares e de professores (que trazem a cura de enfermidades, as inovações tecnológicas, a segurança física e patrimonial; bem como, conhecimento e cultura à estas mesmas populações).


Assim, conforme passo a relatar a continuação, começou o depoimento do meu vizinho de assento, em um voo comercial entre Brasília e o Rio de Janeiro:


“Sou médico, formado pela Faculdade de Medicina de uma Universidade brasileira. Além de todos os anos de ensino necessários para ingressar na universidade, possuo, ainda, mais seis anos de estudos de Medicina, fundamentais para me tornar médico, ademais dos anos de residência médica, necessários para poder exercer a minha profissão.


Não realizei mestrado ou doutorado em razão de haver casado logo após formado e, pouco tempo depois, já com um filho pequeno, necessitar ganhar a vida com o fruto do meu trabalho.

Assim, sou obrigado, para poder trabalhar e sobreviver da profissão que escolhi (desde que, já em pequeno, via meu avô, também médico, tratando de pessoas em seu pequeno consultório perto de casa, no bairro em que morávamos), a viver dando plantões de 12 ou de 24 horas, em dias alternados, em vários hospitais públicos da cidade.


Meus pacientes são pessoas pobres e humildes, oriundas das vizinhanças do hospital ou mesmo de bairros mais distantes que, por não possuírem renda suficiente para pagar um plano médico, fazem uso do Sistema Único de Saúde; que, embora pago por todos os trabalhadores, apenas é utilizado por aqueles mais pobres e seus familiares, em razão das deficiências hospitalares e da baixa qualidade do atendimento público.

Minha ocupação diária nos hospitais em que trabalho consiste, basicamente, em evitar que meus pacientes venham a falecer no meu plantão; já que, por não trabalhar todos os dias no mesmo hospital, ao retornar a este novamente os pacientes que encontrarei, normalmente, já serão outros. Alguns daqueles primeiros pacientes, que atendi da última vez, já terão tido alta, outros terão sido transferidos para diferentes unidades, outros terão falecido, etc. 

Nas ocasiões em que encontro alguns pacientes, anteriormente atendidos por mim, algumas vezes, as condutas e prescrições já foram modificadas por outros colegas com os quais não pude discutir o caso; posto que, trabalhamos todos em regime de plantão e só nos encontramos, rápida e ocasionalmente, quando da entrada ou saída nos hospitais.

Por vezes, deparei com pacientes graves, de outras especialidades, se esvaindo pelos corredores e clamando por um atendimento, inexistente naquelas ocasiões por falta de médicos das especialidades requeridas, em razão dos baixos salários oferecidos pelo hospital.

Nestas oportunidades, como eu também tinha os meus próprios pacientes graves e aquelas não eram as minhas especialidades, fui obrigado a me omitir. No início passava o dia todo com uma sensação de culpa; porém, com o tempo, aprendi a só me preocupar com o que me dizia respeito.

Trabalho em quatro hospitais distintos dando em cada um deles, semanalmente, plantões de doze e de vinte e quatro horas. Para poder trabalhar nestes hospitais fui obrigado a fazer parte de uma cooperativa de médicos e, nesta condição, não possuo vínculo empregatício com nenhum dos hospitais, não tendo, portanto, direito aos benefícios trabalhistas de férias, licenças, horas extras, décimo terceiro salário, férias remuneradas, etc., benefícios estes comuns a todos os demais trabalhadores das outras categorias.


Por vezes, ao finalizar o plantão de vinte e quatro horas, em um hospital, já inicio um novo, também de vinte e quatro horas, em outro; pois o hospital não se interessa em saber de onde estou vindo, se estou descansado, se dormi e me alimentei suficientemente, etc.


Nestas ocasiões, as poucas horas de sono que consigo desfrutar são obtidas, quase sempre, à noite e em horas de queda no movimento, em cima de uma maca, por vezes suja de sangue, ou em alguma cadeira abandonada em canto menos movimentado do hospital.


Durante os plantões de vinte e quatro horas, normalmente, não me alimento, já que trabalho sob pressão o tempo todo em virtude do excesso de pacientes; além da alimentação fornecida pelo hospital, em geral, ser abaixo da crítica, não despertando nenhuma vontade de ingeri-la.

Minha capacidade de diagnosticar, muitas vezes, é limitada; já que, a maioria dos equipamentos que subsidiariam os diagnósticos (tomógrafos, aparelhos de ultrassonografia, raios x, etc.), bem como, laboratórios de análises clínicas e patológicas, raramente estão funcionando a contento. A minha capacidade de intervir também é prejudicada em razão da falta de medicamentos, material cirúrgico, material de enfermagem, etc.


Aqueles pacientes não atendidos no momento (posto que as administrações dos hospitais, normalmente, impõem senhas para o atendimento, já que o número de pacientes é superior ao da capacidade dos hospitais públicos em prestar-lhes assistência) voltam seus ódios, justificados, em direção aos médicos. Afinal, somos os únicos de toda essa cadeia de erros e omissões com os quais eles, pobres coitados, têm contato. Assim, descarregam sobre nós, por vezes com agressões verbais e físicas, todo o ódio que têm acumulado em razão das injustiças que sofrem desde muito e por toda parte.

Não veem que acima de nós, com responsabilidades infinitamente superiores às nossas na administração de todo esse Sistema caótico, escondem-se coordenadores, subchefes, chefes, superintendentes, diretores, subsecretários e secretários de Saúde, prefeitos e governadores (passando estes os seus dias em milhares de gabinetes atapetados, com ar condicionado e viaturas oficiais a disposição deles e das suas famílias), aos quais deveriam ser dirigidos os ódios acumulados pelos pacientes; posto que, a estas autoridades, como criadoras e administradoras deste Sistema, cabem as responsabilidades pelo seu gerenciamento.


Tais autoridades, entretanto, nunca são vistas pelos pacientes necessitados, que culpam a nós, os médicos, pelos seus sofrimentos e pelas mazelas daquele atendimento precário; já que nós estamos ali, todos os dias, em contato direto com eles. Esquecem-se de que, assim como eles, somos também vítimas desse Sistema de Saúde ineficiente e até mesmo criminoso.


 Muitos governantes ao anunciarem a construção de mais uma Unidade Hospitalar, pensam, apenas, nas polpudas comissões pelo superfaturamento das obras e dos equipamentos, além de terem seus nomes afixados nas placas de inauguração à entrada dos hospitais, e não na contratação de médicos, enfermeiras e atendentes capacitados, em número suficiente e com salários dignos, que irão fazer funcionar aquela unidade e prestar serviços de qualidade aquelas populações enfermas.


Ao término de mais um dia de plantão, quase sempre, sinto fortes dores de cabeça, só reduzidas com a ingestão de potentes medicamentos.


Nestes dias atuais em que a pandemia atinge o nosso país, estou trabalhando dois dias da semana em um hospital de campanha, montado para atender às vítimas da pandemia. Em que pese os cuidados que nós, médicos, temos que ter para não nos contaminarmos, a chance de contrairmos a doença é enorme. Da mesma forma, a chance de contaminarmos as nossas famílias é altíssima, em que pese todos os cuidados que evidentemente tomamos.


Minha mulher só a vejo nos fins de semana e tenho acompanhado o crescimento do meu filho à distância, pelo que ela me relata de suas atividades no colégio e em casa.

Tomo sempre muita atenção no trato com os pacientes e seus familiares, para evitar qualquer mal entendido que, porventura, venha a ensejar, por parte deles, uma ação judicial, cível e/ou criminal por algum suposto erro médico que, mesmo sem nenhum fundamento e, muitas vezes, por simples raiva do paciente ou do familiar contra um atendimento padrão, que julgou insuficiente para curá-lo completamente ou salvar a vida do seu ente querido, irá me atormentar durante vários anos com inúmeras idas e vindas ao fórum para prestar depoimentos; além de despesas financeiras com a contratação de advogados (sempre caríssimos, em se tratando de causas cíveis e criminais). O Hospital ou a cooperativa da qual faço parte para poder trabalhar nos hospitais, se eximirão de dividir os honorários que terei de pagar ao advogado e a eventual indenização ao paciente ou à sua família, caso fixada uma pela justiça. Cuidar de um paciente não é estabelecer um contrato de resultados. Os organismos são diferentes e podem não responder da mesma maneira a um mesmo tratamento.


Ganhando a causa sei que não poderei solicitar da parte perdedora o ressarcimento das despesas advocatícias que tive, nem pleitear danos morais. Perdendo a causa, sei que terei de indenizar a parte ganhadora, pagar os advogados e, talvez, até vir a perder o direito de exercer minha profissão; além de, quase sempre, ser obrigado a prestação de serviços comunitários, custear cestas básicas ou, até mesmo, vir a passar alguns anos atrás das grades.


Em um Sistema de Saúde inteiramente errado e vicioso, desde a faculdade que me formou (que, quase sempre, não dá aos estudantes o treinamento necessário para exercer a sua profissão), até o local público onde trabalho (que, muitas vezes, não fornece os meios necessários para o bom desempenho profissional dos médicos), o único culpado e bode expiatório sou eu, que, um certo dia, no passado, tive a infeliz ideia de resolver estudar Medicina para poder ajudar os meus semelhantes.


Alguém dirá, mas os médicos são todos bem remunerados e ricos. Isto, como em todas as profissões, ocorre com alguns poucos que se tornaram expoentes e referência em determinadas especialidades. Estes, quase sempre não possuem convênios com planos de saúde nem trabalham em hospitais públicos, trabalhando em seus consultórios particulares ou, então, ocorre com aqueles que enveredaram pela política e ocupam posições de diretores em hospitais, secretários de saúde, etc.


Esta, para aqueles que não sabem, é a minha guerra diária, na qual, no mínimo, tenho que matar um leão todos os dias e, por isso mesmo, sou acusado de não preservar nem a fauna nem a flora, além de destruir o meio ambiente, por pessoas e críticos que jamais viveram em uma floresta onde costuma predominar a vida selvagem e a Lei da Selva”.

Deixe um comentário