É sobejamente conhecido dos historiadores a tradicional leniência das nossas autoridades, desde os tempos do Brasil-Colônia até os dias atuais, com respeito aos criminosos oriundos das classes de renda mais alta, envolvidos em crimes financeiros e em desvio de recursos públicos.
A mesma leniência não costumava existir no reinado, no império e na república, quando se tratava daqueles criminosos de renda mais baixa, isto é, da gente do povo. Hoje em dia, no entanto, com a ideologia marxista permeando as decisões da justiça, muitos juristas consideram todos os criminosos, tanto os de classe de renda mais alta quanto os de classe de renda mais baixa, como pobres coitados que, através da violação de injustas leis, encontraram uma forma de contestar o odiento sistema capitalista selvagem que os oprime e lhes suga o sangue, expropriando daqueles que têm a posse dos bens e do próprio Estado espoliador, aquilo tudo que, por direito, a eles, os mais carentes, pertenceriam.
O crime para aqueles que assim pensam (e que não são poucos) deveria, pois, receber penas mais brandas, como a progressão de regime; penas alternativas pecuniárias; proibição do uso de algemas; saídas temporárias para comemorar dias santos e feriados; audiências de custódia que constrangem e humilham os policiais; prisão domiciliar; limite de pena para presos idosos; regime semiaberto; manutenção do mandato popular para políticos condenados, que seriam parlamentares, durante o dia, e presidiários durante a noite; uso de tornozeleira eletrônica que possibilitaria a libertação do preso, com algumas restrições de se ausentar do Estado; redução de pena por bom comportamento; etc.
Antigo livro denominado ‘A Arte de Furtar’, atribuído ao jesuíta Padre Manuel da Costa (1601-1667), é uma das obras literárias emblemáticas do período da Restauração e o ponto mais alto da literatura portuguesa de costumes dos séculos XVI à XVIII.
A sua redação ocorreu, como se depreende do texto, em 1652, ou seja, ainda em vida de D. João IV, ao qual foi oferecida pelo autor, embora apenas tenha sido impressa quase um século depois. O livro faz um inventário das numerosas formas de roubo, notadamente nas colônias, e desmascara as múltiplas espécies de ladrões, para que os leitores deles se acautelem e o rei lhes dê “o castigo que merecem”.
A roubalheira e a corrupção eram tão gerais, segundo o autor, que ele não aceitava que ninguém lhe arguisse a obra, à exceção do rei e do príncipe herdeiro, já que todos os restantes lhe eram suspeitos. Assim, do clero à burguesia, passando pelos militares e pela nobreza, a todos vai o autor descobrindo as “unhas” e as “traças de ladrões”, excetuando convenientemente “os ministros que assistem a El-Rei” de Portugal”. O rei, evidentemente, pouca atenção deu ao livro, pois estas ações tipificadas na obra eram características das elites nobres, sustentáculo da monarquia e do próprio Rei.
Segundo nos narra Laurentino Gomes em sua obra 1808, D. João VI ao embarcar com a corte para o Brasil trouxe consigo todo o tesouro português e dois de seus principais assessores, já então acusados de corrupção e roubos na ocasião: O Visconde de Rio Seco (Joaquim José de Azevedo) que no Rio de Janeiro acumulou imensa fortuna como tesoureiro-mor e Bento Maria Targini, que comandava o Erário Real. Ambos, que já eram ricos em Portugal, enriqueceram de forma desmesurada no Brasil, sob os auspícios do monarca.
Ao retornar de volta para Portugal em 1821, D. João VI raspou os cofres do Banco do Brasil e levou embora o que restava do tesouro real que havia trazido para a colônia em 1808. “A realeza que acabava de viver na corrupção, fizera um verdadeiro assalto ao erário brasileiro”, segundo o historiador Oliveira Lima, citado no livro mencionado.
Conforme nos conta Laurentino em seu livro, versos populares satirizavam a roubalheira da época, como este:
“Quem furta pouco é ladrão
Quem furta muito é barão
Quem mais furta e esconde
Passa de barão a visconde”.
Chegando a Lisboa, vários integrantes da comitiva real, que embarcaram de volta, no Rio de janeiro, junto com D. João VI, foram impedidos de desembarcar acusados de corrupção e roubo na administração dos cofres públicos do Rio de Janeiro, dentre eles o famoso e já citado Visconde de Rio Seco.
Outra semelhança do Brasil de então com os recentes governos brasileiros das últimas décadas, foi o fato de D. João VI pagar uma pensão anual a Hipolito José da Costa, brasileiro que vivia na Inglaterra e era dono do jornal Correio Brasiliense, editado em Londres em virtude da censura existente no Brasil. Hipolito, inicialmente, escrevia contra D. João e seu reinado.
Depois de procurado por emissários do rei, estabeleceu-se um “sistema de relações promiscuas entre o seu jornal e o governo no Brasil. Por um acordo secreto D. João começou a subsidiar Hipolito na Inglaterra e a garantir a compra de um determinado número de exemplares do Correio Brasiliense, com o objetivo de prevenir qualquer radicalização nas opiniões expressas no jornal” – afirma Laurentino Gomes em sua obra 1808.
Cerca de duzentos anos depois, a mesma tática continuava sendo usada pelos governantes de esquerda para comprar o apoio da mídia, visando esconder fatos importantes que os denegrissem e para ressaltar notícias medíocres que os enalteciam.
Tratava-se aquela de uma corte perdulária e voraz, com a pratica da caixinha nas concorrências e nos pagamentos dos serviços públicos. “Cobrava-se uma comissão de 17% sobre todos os pagamentos ou saques do tesouro público, como extorsão velada. Se o interessado não pagasse o processo parava. Era uma corte de muita corrupção e peculato”, segundo Oliveira Lima, citado no livro de Laurentino Gomes.
Episódio anterior, marcado pelos historiadores, passou-se com um administrador português chamado Francisco de Castro Morais. Este foi governador e capitão-geral da capitania do Rio de Janeiro, de 1697 a 1699, da capitania de Pernambuco, de 1703 a 1707 e, novamente da capitania do Rio de Janeiro, de 1710 a 1711. Era governador da cidade do Rio de janeiro durante as invasões francesas de Duclerc (1710) e de René Duguay-Trouin (1711) em busca de saque e de resgate no Rio de janeiro, conhecido, na ocasião como um entreposto do ouro que afluía em quantidade das montanhas da região das Minas Gerais.
Na segunda invasão, comandada por Duguay Trouin, o governador desguarneceu antecipadamente as fortalezas e movimentou as tropas de defesa da cidade em direção oposta à dos invasores, permitindo a fácil tomada da cidade, em um ato reconhecido pelos habitantes, de então, como de alta traição.
Segundo comentário do historiador Ione de Andrade “entre o governador e sua família, bem como entre os demais chefes políticos e religiosos da praça carioca e os franceses, reinou, durante as negociações para o resgate da cidade (600 mil cruzados em ouro, 200 bois e 100 caixas de açúcar), uma tal cordialidade que hoje temos a impressão de que o episódio da invasão foi, na verdade, pretexto para que, no engenho jesuíta chamado Engenho Novo, se encontrassem os representantes de duas organizações mercantis, a fim de negociarem livremente a venda e compra de um próspero entreposto, situado à beira-mar”.
Denunciada a atuação do governador carioca às autoridades portuguesas, foi feita uma devassa por uma comissão vinda de Portugal que concluiu pela culpabilidade de Castro Morais no favorecimento a Duguay Trouin e na facilitação da invasão dos franceses.
Sua pena foi ser condenado a ‘queima em esfinge’, pena esta imposta na ocasião aos crimes das altas autoridades e de seus familiares.
A dita pena consistia em confeccionar-se um boneco com as feições do condenado, tipo físico semelhante e vestido com roupas por ele usadas, ao qual era ateado fogo (como nas tradicionais malhações e queimas de judas, ainda comuns no Brasil durante a páscoa). Tratava-se, pois, de um simulacro de punição, para não pensarem que o crime compensava e que o criminoso saia sempre impune.
Após a queima em esfinge, o ex governador foi enviado exilado para as Índias portuguesas, onde ficou por pouco tempo, e terminou seus dias em 1738, na cidade de Chaves, em Portugal.
Como mencionam alguns historiadores que se ocuparam do período, a corrupção generalizada nos altos postos da mais importante cidade do Brasil no século XVIII, acabou por convencer a coroa portuguesa da necessidade de dar mais atenção à sua colônia.
Outro episódio histórico, onde ficou bem claro a leniência das autoridades com muitos dos presos condenados, foi o da conhecida Conjuração Mineira ou Inconfidência Mineira.
Segundo o historiador Marcos Correia, como também na opinião do historiador maranhense Austregésilo Cerqueira Nunes, Tiradentes não teria morrido enforcado em 1792, como um dos principais responsáveis pela Inconfidência Mineira. A opinião dominante é a de que Tiradentes teria sido beneficiado por um dos juízes da Devassa, o poeta Cruz e Silva, que tinha sido amigo de muitos dos inconfidentes. De acordo com Correa, Tiradentes teria salvado a vida de Cruz e Silva, que, como ele, também era maçom. Um ladrão e bêbedo contumaz, preso na mesma ocasião, teria assumido a identidade de Tiradentes na forca em troca de dinheiro e de proteção à sua família. Ambos possuíam estatura parecida, estavam barbados, cabeludos e esfarrapados, podendo passar um pelo outro perante o público que assistiu ao enforcamento.
Conforme as versões dominantes, Tiradentes teria, a seguir, sido banido para Angola, de onde seguiu posteriormente para Lisboa. Esteve em Paris em 1793. Segundo consta, existe, na Torre do Tombo, em Portugal, uma carta do desembargador Simão Sardinha, na qual este diz ter-se encontrado na Rua do Ouro, em dezembro de 1792, com alguém parecido com Tiradentes, a quem conhecera no Brasil, e que saiu correndo quando o viu. Tiradentes teria voltado ao Brasil em 1806, onde faleceu em 1818.
De acordo com o que mencionam alguns historiadores, dentre estes Cerqueira Nunes, “entre os figurões coloniais da Inconfidência o próprio governador-general, Visconde de Barbacena, estaria envolvido até o pescoço na conspiração, motivo pelo qual teria demorado tanto para denunciar o complô ao vice-rei, seu próprio tio. O principal delator, Joaquim Silvério dos Reis, tio-avô do intrépido Duque de Caxias, estando endividado teria delatado os inconfidentes em troca do perdão da sua dívida”. A maçonaria, a qual muitos dos réus e juízes pertenceriam, teria obrado no sentido de abrandar e diminuir penas e absolver participantes da conjuração.
Mais recentemente, os brasileiros foram surpreendidos com o episódio conhecido como Operação Lava a Jato, em que diversos políticos, empresários e executivos foram acusados de corrupção ativa e passiva e condenados em primeira instância, notadamente o ex presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, que foi considerado culpado e recorreu, em Segunda Instância, ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, em Porto Alegre. A sua condenação foi confirmada por este segundo tribunal, sendo a pena aumentada de 9 anos e meio para 12 anos e 1 mês.
Mencionaremos apenas este caso, por ser um dos que mais se destacou dentre todos os outros. Deixaremos de mencionar os milhares de outros casos de menor monta ocorridos em administrações federais, estaduais e municipais, ao longo das últimas décadas, em que os réus foram simplesmente absolvidos ou tiveram seus processos arquivados por falta de provas, por decurso de prazo ou por prescrição.
A defesa do ex-presidente, no caso mencionado, chegou a protocolar cerca de 78 questionamentos judiciais no âmbito de um único processo, que acabou levando o ex presidente à condenação e a prisão, ainda, em segunda instância. Além deste processo, pelo qual foi condenado, Luiz Inácio Lula da Silva responde a mais oito outros processos.
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, de forma casuística segundo especialistas em Direito Constitucional, mudou o entendimento do dispositivo constitucional que permitia a prisão do réu após condenado em segunda instância, por três vezes desde a Constituição de 1988; isto é, em 2009, 2016 e recentemente em 2019. Dos onze ministros que integram o STF, sete deles foram nomeados pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef, ambos do Partido dos Trabalhadores.
No mês de novembro de 2019, o STF decidiu derrubar a possibilidade de prisão em segunda instância, isto é, decidiu que a prisão do réu sem esgotar todos os recursos jurídicos seria inconstitucional. Por esta razão, Luiz Inácio Lula da Silva foi solto no dia seguinte ao da votação e responderá aos recursos, ainda possíveis no âmbito do processo em que figura como réu condenado, em liberdade. A decisão do supremo beneficiou com a liberdade, além de Lula, todos os demais condenados envolvidos na Operação Lava a Jato e já julgados, condenados e presos. Ademais disso, beneficiou, ainda, milhares de outros condenados presos em primeira e segunda instâncias, cujas condenações não tivessem transitado em julgado e ainda coubesse recursos ao STF.
Por outro lado, foram estabelecidos Acordos de Leniência, firmados entre o Ministério Público Federal e as empresas envolvidas em episódios de corrupção no âmbito da operação Lava a Jato. Segundo estes acordos as empresas devolveriam ao Estado parte dos recursos roubados. Tais valores, a serem devolvidos, foram considerados recordes mundiais em razão dos seus montantes. Os pactos firmados entre as partes deveriam ser submetidos aos juízos competentes para homologação. As empresas beneficiadas comprometiam-se a “prevenir a ocorrência de novos ilícitos e privilegiar, em grau máximo, a ética e a transparência na condução de seus negócios, a partir de então”.
Conforme ficou amplamente evidenciado neste texto, os leitores puderam perceber a contumaz leniência com que são tratados os casos de desvios de recursos públicos em nosso país, praticados pelas elites e por seus representantes desde os tempos da sua descoberta em 22 de abril de 1500.
Comparando as nossas penas com aquelas descritas por Dante Alighieri (1265-1321), em seu poema ‘A Divina Comédia’ (publicado pela primeira vez em 1555 e onde o poeta fornece uma descrição dos sofrimentos impostos, no Inferno, aos espíritos daqueles condenados por vícios, crimes e pecados, de muito menor monta que os que foram julgados e condenados no âmbito da nossa humana Operação Lava a Jato), podemos aquilatar como a nossa justiça tem sido tolerante e leniente com os membros da elite que, no dizer de muitos deles, apenas cometeram ‘malfeitos’; malfeitos estes, que, no entanto, a par de enriquecer suas respectivas contas correntes em paraísos fiscais, deixaram morrer à míngua milhares, senão milhões, de cidadãos brasileiros que alimentaram com seus impostos essa tradicional ‘farra do boi’, onde o personagem principal, o boi, após ser torturado, acaba por findar seus dias em espetos de churrasco, queimado de verdade e não apenas em esfinge…