█ Um dia eles vieram…

Alguns escritores com acentuada veia poética conseguem colocar no papel, de forma precisa e realista, sentimentos e percepções que lhes chamaram a atenção sobre determinadas situações vivenciadas por toda a coletividade na qual se inserem.

Isto ocorreu nos casos de Martin Niemöler e de Eduardo Alves da Costa.


Martin Niemöller (1892-1984) foi um pastor luterano alemão, considerado em sua época como um símbolo da resistência aos nazistas. Tornou-se mundialmente conhecido em razão do seu discurso-poema conhecido em nosso país como ‘E não sobrou ninguém’.


Este discurso-poema, de 1933, que possui diversas versões, pois foi dito por ele em várias ocasiões de forma distinta, dizia o seguinte:


E Não Sobrou Ninguém


“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei.


No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei.


No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei.


No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar…”


Outra versão do seu discurso é a seguinte:


“Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista.


Quando eles prenderam os socialdemocratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um socialdemocrata.


Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista.


Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu.


Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar.”


Outro conhecido poema, denominado “No caminho com Maiakóvski”, do escritor e poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa, datado de 1968, foi muito citado pelos integrantes da resistência à Revolução de 1964, como crítica aos militares, e erroneamente atribuído ao próprio poeta russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930).


O poema de Eduardo Alves da Costa, em um trecho, diz o seguinte:


No caminho com Maiakóvski


“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim.


E não dizemos nada.


Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão.


E não dizemos nada.


Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.


E já não podemos dizer nada”.


Inspirando-me, pois, nos dois poemas precedentes, resolvi fazer um texto que, da mesma forma como os anteriores retratavam situações vividas por cidadãos em determinadas épocas e em determinados países, buscasse também evidenciar a situação vivida pelos cidadãos brasileiros, eleitores do atual presidente Jair Bolsonaro. O meu texto, que denominei de ‘Um dia eles vieram…”, é apresentado a continuação:


Um dia eles vieram…


Um dia, contrariando determinações do presidente da república, eles vieram e ordenaram o fechamento das escolas, das industrias e do comércio. Como não sou estudante, nem industrial e nem comerciante, eu não disse nada.


O presidente reclamou, mas eles responderam que ele não tinha autoridade para impedir estas medidas que estavam sendo impostas às populações de todo o país.


Depois eles proibiram as pessoas de saírem às ruas. Como as lojas estavam fechadas e não havia transporte público disponível, eu não disse nada.


Mais tarde eles soltaram todos os criminosos presos, inclusive aqueles presos por corrupção. Como eu não sou policial, nem promotor de justiça e nem juiz, eu não disse nada.


Pouco depois eles proibiram o presidente e os ministros de nomearem os seus subordinados. Como não sou ministro, nem presidente, eu não disse nada.


Até que um dia eles aprovaram o impedimento do presidente, à revelia do povo, e colocaram um substituto em seu lugar, que passou a governar segundo as ordens deles. Achei estranho, mas como não entendo nada de política, eu não disse nada.


Mesmo quando me dei conta de que a vida estava muito pior; que uma multidão de desempregados vagava a esmo pelas ruas procurando aquilo que já não existia mais; que a mesma fome que há pouco atingia as casas mais humildes, agora já atingia as ricas mansões, eu continuei calado.


Por fim, quando me vi disputando com parentes e amigos restos de lixo amontoados pelas ruas do bairro, em busca de comida, conforme já vira antes pela TV muitas pessoas fazerem na cidade de Caracas, na Venezuela, me dei conta de que o grande culpado daquela trágica situação éramos nós mesmos, os brasileiros acovardados e acomodados.


Lembrei-me, então, de um texto que havia lido há muitos anos, ainda em minha juventude, e que, embora houvesse despertado a minha atenção na ocasião, não dei a ele muita importância.


O texto havia sido escrito por Étienne de la Boétie, advogado francês que ocupou o cargo de conselheiro do Parlamento de Bordéus. Bem antes de Rousseau apresentar o seu “Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens”, Étienne já havia escrito sobre os tiranos e a servidão.


Em seu ‘Discurso da Servidão Voluntária’, escrito entre 1546 e 1548, ele afirmava:


 “É incrível ver como o povo, quando é submetido, cai de repente em um esquecimento tão profundo de sua liberdade, que não consegue despertar para reconquistá-la. Serve tão bem e de tão bom grado que se diria, ao vê-lo, que não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão”.


“É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força. Mas os que vêm depois servem sem relutância e fazem voluntariamente o que seus antepassados fizeram por imposição. Os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam que têm outros bens e outros direitos, a não ser os que encontraram. Chegam, finalmente, a persuadir-se de que a condição de seu nascimento é natural”.


“Os homens submissos, desprovidos de coragem guerreira, perdem também a vivacidade em todas as outras coisas, têm o coração tão fraco e mole que não são capazes de qualquer grande ação. Os tiranos sabem muito bem disso. Por isso, fazem o possível para torná-los ainda mais fracos e covardes”.


“A inclinação natural do povo ignorante, cujo número é cada vez maior nas cidades, é desconfiar daquele que o ama e acreditar naquele que o engana. Não penseis que um pássaro caia mais facilmente no laço ou um peixe, por gulodice, morda mais cedo o anzol, que todos esses povos que se deixam atrair prontamente pela servidão, pela menor doçura que os façam provar. É, realmente, assombroso ver como se deixam ir tão rapidamente ao menor afago que lhes seja dispensado”.


“O teatro, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os animais ferozes, as medalhas, os quadros e outras drogas semelhantes eram para os povos antigos a isca da servidão, o preço da sua liberdade, os instrumentos da tirania. Os tiranos antigos empregavam esses meios, essas práticas e esses atrativos para entorpecer seus súditos sob o jugo. Assim os povos, embrutecidos, achando belos esses passatempos, entretidos por um prazer vão, que passava rapidamente diante de seus olhos, se acostumavam a servir tão ingenuamente (e até pior) como as criancinhas que aprendem a ler vendo as imagens brilhantes dos livros coloridos”.


“Os tiranos de Roma recorreram também a outro meio: dar com frequência festas às decúrias públicas, iludindo como podiam essa canalha que se entrega ao prazer da boca, mais que a qualquer outra coisa. O romano mais sensato e esperto não deixaria sua tigela de sopa para recuperar a liberdade da República de Platão. Os tiranos distribuíam em profusão um quarto de trigo, um sesteiro de vinho e um sestércio, e então dava dó ouvir gritar: ‘Viva o Rei!’


“Os imbecis não percebiam que recuperavam apenas uma parte do que era seu, e que mesmo a parte que recuperavam o tirano não pudera dar-lhes se, antes, não a tivesse tirado deles mesmos. O que hoje apanhava o sestércio e se empanturrava no banquete público bendizendo a generosidade de Tibério ou de Nero no dia seguinte, obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à luxúria, seu próprio sangue à crueldade desses imperadores magníficos, não dizia palavra, mudo como uma pedra e imóvel como um tronco”.


“O povo ignorante sempre foi assim: entrega-se com paixão ao prazer que não pode receber, honestamente, e é insensível ao erro e à dor que não pode suportar sem se aviltar”.


 “Os primeiros reis do Egito nunca se mostravam em público sem levar ora um gato, ora um ramo, ora um fogo sobre a cabeça, e desse modo se mascaravam e se fingiam de mágicos. Com essas formas estranhas, inspiravam certa reverência e admiração a seus súditos, que só deveriam rir e zombar deles, se não fossem tão estúpidos ou submissos. É realmente lamentável ouvir falar de quantas coisas os tiranos do passado se valeram para consolidar sua tirania, e de quantos meios mesquinhos se serviam, encontrando sempre o populacho tão bem disposto em relação a eles, que caia em sua rede mesmo quando mal soubessem armá-la”.


 “Eles sempre tiveram facilidade em enganá-lo e nunca o sujeitaram melhor do que quando mais zombavam dele”.


“Os próprios tiranos achavam estranho que os homens pudessem suportar um homem que os maltratasse. Por isso se cobriam de bom grado com o manto da religião e, se possível, queriam tomar emprestada alguma amostra da divindade para manter sua vida malvada”.


Embora escrito há 474 anos, o texto de Étienne de la Boétie continua atual, pois foi escrito sobre alguns caracteres psicossociais intrínsecos aos seres humanos. Estes, infelizmente, parece que sempre serão os mesmos e que jamais mudarão. Já eram assim na Antiguidade Clássica, continuaram assim na Idade Média e, na Modernidade, ainda permanecem assim na grande maioria dos habitantes dos 193 países existentes no planeta.


E pensar que ver-se livre desta servidão voluntária não é impossível, caso os seres humanos se dessem conta da proposta formulada por Étienne em seu Discurso da Servidão Voluntária:


 “Não é preciso combater nem derrubar esse tirano. Ele se destrói sozinho, se os habitantes do país não consentirem com suas servidões. Nem é preciso tirar algo ao tirano, mas só não lhe dar nada. O país inteiro não precisa esforçar-se para fazer algo em seu próprio benefício, basta que não faça nada contra si mesmo”.


“São, por conseguinte, os próprios povos que se deixam, ou melhor, que se fazem maltratar; pois eles poderiam ser livres, caso parassem de servir. É o próprio povo que se escraviza e se suicida, quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, até mesmo, o procura”.


Esta solução de Boéthie foi aplicada com sucesso, pela primeira vez, em 1906, por Mahatma Gandi, ao conclamar o povo indiano a operação Satyagraha, uma forma não violenta de protesto e de desobediência civil contra o domínio do Império Britânico na Índia.


_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro fundador da Academia Brasileira de Defesa – ABD e Membro Titular do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos – CEBRES.


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